O ano de 2020 foi um período sombrio ao redor do mundo devido aos efeitos da pandemia do coronavírus. Os desdobramentos da rápida difusão e da letalidade da doença no campo da saúde foram devastadores, assim como sobre a economia, sobretudo a economia brasileira.

Os planos de saúde são agentes de grande relevância em ambos os campos e, como tal, foram fortemente influenciados por esses desdobramentos. Por determinação da Agência Nacional de Saúde (ANS), ficaram impedidos de realizar o reajuste anual para planos que faziam aniversário dos meses de maio a dezembro de 2020. Entretanto, devido ao baixo uso dos serviços dos planos pelos contratantes durante o ano, somado à suspensão de todas as cirurgias eletivas, ainda obtiveram resultados financeiros superiores aos dos anos anteriores. O consumo dos serviços foi baixo porque os consumidores evitaram ao máximo visitar hospitais e consultórios devido ao receio de contrair a Covid 19.

Apesar disso, foram autorizados a cobrar esses aumentos de modo retroativo a partir deste mês, sem prejuízo do reajuste do próprio ano de 2021. O valor que deixou de ser cobrado em 2020 agora vem parcelado ao longo de doze meses, em conjunto com a cobrança reajustada.

Taxas de aumento, a princípio

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) fez um levantamento sobre o acúmulo do reajuste e da cobrança retroativa e constatou aumentos das mensalidades que variam entre 12,21% e 49,81%.

A ANS estabeleceu a taxa limite de reajuste para planos individuais em 8,14%. Com a soma da parcela da cobrança retroativa o aumento fica um pouco acima dos 12%. Se ocorrer o acúmulo com a mudança de faixa etária de plano, que também implica aumento da mensalidade, o aumento vai para 35%, de uma única vez, entre as mensalidades de dezembro e de janeiro. Isso porque os reajustes de planos individuais são regulados pela ANS. Planos coletivos e planos coletivos de adesão, ambos isentos desse regulamento, podem superar os 49% de aumento quando ocorre mudança de faixa etária.

O Idec ressalta que esses valores são cálculos conservadores, baseados em médias. Os reajustes efetivamente aplicados podem superá-las. É o que tem constatado o Procon de São Paulo. De acordo com reclamações recebidas pelo órgão, há casos numerosos com aumentos muito maiores, chegando a absurdos 113%.

Janaina Alves da Costa, comerciante de 44 anos, viu, estupefata, o valor da mensalidade do seu plano saltar de R$ 422,63, em dezembro, para R$ 704,35, em janeiro, configurando um aumento de 67%. Procurou a operadora do plano e ainda aguarda resposta, mas não será capaz de manter o plano caso não consiga uma redução significativa no valor.

Onda de reclamações

Em um país com a economia em frangalhos e recorde da fração da população desempregada, a absoluta falta de bom senso por parte da administração dos planos de saúde ao promover tais aumentos, classificados como abusivos pelo Idec, naturalmente provocou uma onda de reclamações, que se traduz em um enorme aumento do número de apelos acolhidos pelo Procon-SP.

De acordo com informações divulgadas nesta quarta-feira(3) pelo próprio órgão, durante o mês de janeiro de 2021 foram recebidas 962 reclamações referentes a planos de saúde, principalmente relacionadas aos novos valores de mensalidades e à falta de exposição clara quanto aos cálculos envolvidos. Em janeiro de 2020 foram apenas 9 reclamações de planos de saúde. O aumento é de 10.000% (dez mil por cento).

Autoridades surdas

Em petição enviada à ANS, o Procon expressou preocupação com os aumentos e as bases regulamentares que deveriam impedi-los. Não houve justificativa do aumento das despesas médicas e hospitalares por parte das operadoras dos planos de saúde, assim como não informaram o índice de sinistralidade e não provaram negociação bilateral com a agência reguladora. A petição não surtiu efeito.

O Idec foi diretamente à justiça, pedindo o impedimento da cobrança retroativa, mas o pedido foi negado em primeira e segunda instância por juízes de plantão, durante o recesso do judiciário, e novamente após o fim do recesso.

Sobrecarga do SUS

O resultado mais provável do impasse é que, naturalmente, o lado mais fraco apenas tenha de acatar os abusos das operadoras e uma parcela considerável dos clientes dos planos se tornem inadimplentes, o que comprometerá seu crédito e prejudicará ainda mais a abalada economia, ou cancelem seus planos precisando recorrer unicamente ao SUS. O cancelamento pode acarretar multas que, novamente, podem provocar inadimplência e comprometimento de crédito, mas a dependência exclusiva do SUS, a curto prazo, pode ser um desdobramento ainda pior.

A pandemia deixou bem claro que o SUS é absolutamente essencial e que tanto carece quanto merece investimentos mais vultuosos para amadurecer ainda mais e ampliar seu alcance. Entretanto, em seu atual estado e no contexto pandêmico, lançar uma boa parcela da população com cobertura de saúde particular aos cuidados já exaustos do SUS pode ter consequências catastróficas.

Hospitais públicos em todo o Brasil não dispõem de recursos para atender num ritmo que possibilite a liberação dos corredores e recepções tomados por pacientes que aguardam horas à espera de alento. Aumentar esse contingente vai, inevitavelmente, aumentar as aglomerações nesses locais e favorecer a transmissão da covid. Dado que sua taxa de letalidade é comprovadamente maior quando seus efeitos se somam aos de outras doenças, e dado que poucos são os que visitam hospitais sem qualquer condição de enfermidade, o contágio nesse cenário é potencialmente mais fatal.